O relator da ONU encarregado de avaliar a discriminação no mundo, Doudou Diène, diz que o preconceito é cada vez maior em muitos países e que no Brasil ele está profundamente arraigado em toda a sociedade
por Dayanne Mikevis.
O Brasil recebeu no mês passado a visita de um homem cuja a missão de fazer três perguntas a um eclético grupo de pessoas, que ia de representantes da sociedade civil ao presidente da República. Para isso, passou dez dias no país cumprindo uma agenda atribulada em Brasília, Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Paulo. Na forma, as questões eram absolutamente singelas: a) Existe racismo no Brasil?; b) Quais são as manifestações de discriminação e racismo atualmente?; e c) Quais são as soluções para combater o problema? Se perguntar não ofende, como reza o velho bordão, não se pode dizer o mesmo das respostas que o senegalês Doudou Diène ouviu. O relator especial da Comissão de Direitos Humanos da ONU para as Formas Contemporâneas de Racismo e Discriminação disse que ficou "perturbado" com certas coisas que escutou e observou. O relatório com sua análise será divulgado pelas Nações Unidas somente em março. Um dia antes de partir, no entanto, Doudou abriu espaços entre seus compromissos em São Paulo para responder suas próprias perguntas e compartilhar com os leitores da Raça suas primeiras conclusões. Ditas em francês, inglês e um pouco de espanhol - por telefone, pessoalmente e numa entrevista coletiva -, estas são as suas impressões:
Raça - O senhor está há quatro anos na função e já visitou diversos países. Como está o racismo no mundo?
Doudou Diène - Há um recrudescimento do racismo. Nos últimos anos ocorreram três conferências internacionais para combate ao racismo. A última foi a de Durban, e uma convenção internacional foi feita. Apesar disso, atos de racismo ocorrem em todos os continentes e se traduzem em violência. Estamos assistindo à legitimação intelectual do racismo de uma forma que não víamos alguns anos atrás. Samuel Huntington, professor da Universidade Harvard, publicou recentemente o livro Where Are We? ("Onde estamos?"), cuja tese principal é que a presença dos latinos na América do Norte é uma ameaça à cultura norte-americana. É um livro de muitas páginas, que legitima a discriminação da população latina nos Estados Unidos. Portanto, vemos que o bicho está saindo da floresta. Criou-se um ambiente no qual essas coisas podem ser ditas agora. O combate ao terrorismo, que é legítimo, acabou justificando a discriminação contra certos grupos. Tudo isso leva a pensar que a discriminação racial e a xenofobia são as ameaças mais graves aos princípios democráticos. É cada vez maior o número de agremiações políticas que adotam discursos racistas. Na Europa, alguns partidos xenófobos vêm obtendo 15%, 20% dos votos. Isso é muito grave.
Doudou Diène - Há um recrudescimento do racismo. Nos últimos anos ocorreram três conferências internacionais para combate ao racismo. A última foi a de Durban, e uma convenção internacional foi feita. Apesar disso, atos de racismo ocorrem em todos os continentes e se traduzem em violência. Estamos assistindo à legitimação intelectual do racismo de uma forma que não víamos alguns anos atrás. Samuel Huntington, professor da Universidade Harvard, publicou recentemente o livro Where Are We? ("Onde estamos?"), cuja tese principal é que a presença dos latinos na América do Norte é uma ameaça à cultura norte-americana. É um livro de muitas páginas, que legitima a discriminação da população latina nos Estados Unidos. Portanto, vemos que o bicho está saindo da floresta. Criou-se um ambiente no qual essas coisas podem ser ditas agora. O combate ao terrorismo, que é legítimo, acabou justificando a discriminação contra certos grupos. Tudo isso leva a pensar que a discriminação racial e a xenofobia são as ameaças mais graves aos princípios democráticos. É cada vez maior o número de agremiações políticas que adotam discursos racistas. Na Europa, alguns partidos xenófobos vêm obtendo 15%, 20% dos votos. Isso é muito grave.
Revista Raça - Há racismo no Brasil?
Doudou Diène - Recebi dois tipos de resposta. No documento que o Brasil assinou em 2001, na última conferência internacional contra o racismo, realizada em Durban, na África do Sul, o presidente Fernando Henrique Cardoso reconhecia a realidade do racismo. Em contrapartida, encontrei alguns dirigentes estaduais e federais, que relativizam a realidade e a importância do racismo, com base no argumento ideológico da democracia racial. Notei uma grande diferença entre o reconhecimento do racismo pelos aparelhos de Estado e a vontade manifesta de combatê-lo, quando não a própria negação de parte de algumas autoridades. Todas as comunidades com que me encontrei no Brasil - com exceção da japonesa em São Paulo - expressaram com grande dor e sofrimento a profundidade do racismo. A discriminação constitui o pilar ideológico deste hemisfério, e isso inclui o Brasil. Tendo em conta que o país recebeu 40% da população escrava no mundo, ele foi marcado por essa herança. O racismo é uma construção que tem uma extensão intelectual muito intensa, que impregnou a mentalidade das pessoas. Portanto, tiro duas conclusões preliminares sobre a pergunta. Uma é que o racismo certamente existe no Brasil e a outra é que ele tem uma dimensão histórica considerável.
Doudou Diène - Recebi dois tipos de resposta. No documento que o Brasil assinou em 2001, na última conferência internacional contra o racismo, realizada em Durban, na África do Sul, o presidente Fernando Henrique Cardoso reconhecia a realidade do racismo. Em contrapartida, encontrei alguns dirigentes estaduais e federais, que relativizam a realidade e a importância do racismo, com base no argumento ideológico da democracia racial. Notei uma grande diferença entre o reconhecimento do racismo pelos aparelhos de Estado e a vontade manifesta de combatê-lo, quando não a própria negação de parte de algumas autoridades. Todas as comunidades com que me encontrei no Brasil - com exceção da japonesa em São Paulo - expressaram com grande dor e sofrimento a profundidade do racismo. A discriminação constitui o pilar ideológico deste hemisfério, e isso inclui o Brasil. Tendo em conta que o país recebeu 40% da população escrava no mundo, ele foi marcado por essa herança. O racismo é uma construção que tem uma extensão intelectual muito intensa, que impregnou a mentalidade das pessoas. Portanto, tiro duas conclusões preliminares sobre a pergunta. Uma é que o racismo certamente existe no Brasil e a outra é que ele tem uma dimensão histórica considerável.
Revista Raça - Quais são as manifestações de discriminação e racismo atualmente?
Doudou Diène - A primeira delas é no plano econômico, social e político. Isso inclui a educação, habitação e todos os indicadores sociais. Pode-se verificar no Brasil manifestações concretas e materiais do racismo. Uma das mais importantes é a própria invisibilidade dessas comunidades na estrutura de governo, da economia e dos meios de comunicação. É como se o Brasil vivesse em dois mundos no mesmo país. Há o mundo da rua, multicultural, vibrante e caloroso. Mas no que diz respeito às estruturas de poder, há um Brasil diferente, que não reflete essa diversidade, caracterizado pelo ocultamento de comunidades de ascendência africana e indígena, entre outras. Vi o mesmo nos meios de comunicação. Depois de gostar muito da rua brasileira, as imagens que vejo na TV parecem que vêm do cosmo. Não correspondem à rua. O Brasil tem uma peculiaridade que já observei em outros lugares onde existe também essa discriminação histórica: quando o mapa da organização social e política coincide com o mapa das etnias marginalizadas, é sinal de um racismo estrutural muito forte. Só que o racismo não se resume a isso. Existe também no âmbito cultural, dos valores e das identidades. E aí também percebi que o impacto do racismo é muito forte. Muita gente que efetivamente pertence a determinado grupo não quer ser vista como negra ou de outra determinada etnia. E quando em um país as pessoas se recusam a reconhecer aquilo que elas são é porque a ferida do racismo é muito marcada e a negação de si próprio, de sua identidade, é a expressão dessa discriminação. Percebi também que o aspecto cultural foi usado no Brasil como máscara e como álibi do racismo. Em Salvador, há uma grande vitalidade cultural da comunidade de ascendência africana, como a música, a culinária e o candomblé. No entanto, esse vigor multicultural não se traduziu em uma diminuição do racismo na cidade, nem na sua estrutura política.
Doudou Diène - A primeira delas é no plano econômico, social e político. Isso inclui a educação, habitação e todos os indicadores sociais. Pode-se verificar no Brasil manifestações concretas e materiais do racismo. Uma das mais importantes é a própria invisibilidade dessas comunidades na estrutura de governo, da economia e dos meios de comunicação. É como se o Brasil vivesse em dois mundos no mesmo país. Há o mundo da rua, multicultural, vibrante e caloroso. Mas no que diz respeito às estruturas de poder, há um Brasil diferente, que não reflete essa diversidade, caracterizado pelo ocultamento de comunidades de ascendência africana e indígena, entre outras. Vi o mesmo nos meios de comunicação. Depois de gostar muito da rua brasileira, as imagens que vejo na TV parecem que vêm do cosmo. Não correspondem à rua. O Brasil tem uma peculiaridade que já observei em outros lugares onde existe também essa discriminação histórica: quando o mapa da organização social e política coincide com o mapa das etnias marginalizadas, é sinal de um racismo estrutural muito forte. Só que o racismo não se resume a isso. Existe também no âmbito cultural, dos valores e das identidades. E aí também percebi que o impacto do racismo é muito forte. Muita gente que efetivamente pertence a determinado grupo não quer ser vista como negra ou de outra determinada etnia. E quando em um país as pessoas se recusam a reconhecer aquilo que elas são é porque a ferida do racismo é muito marcada e a negação de si próprio, de sua identidade, é a expressão dessa discriminação. Percebi também que o aspecto cultural foi usado no Brasil como máscara e como álibi do racismo. Em Salvador, há uma grande vitalidade cultural da comunidade de ascendência africana, como a música, a culinária e o candomblé. No entanto, esse vigor multicultural não se traduziu em uma diminuição do racismo na cidade, nem na sua estrutura política.
Revista Raça - Quais as são as soluções para o problema?
Doudou Diène - O Brasil fez um esforço considerável na elaboração de um status jurídico contra o racismo, pela legislação, pela criação de estruturas no aparelho de Estado, em especial a Secretaria pela Igualdade Racial, SEPPIR, com políticas de ação afirmativa e, sobretudo, no aspecto jurídico. Não há dúvida de que mostra uma vontade de acabar com o racismo. A lei e a constituição brasileira são os documentos que o Brasil se deu para combater o racismo de uma maneira clara e firme. A única questão é a aplicação dessa legislação. Vi duas realidades muito complexas no Brasil. De um lado, conheci pessoas com vontade de lutar contra a discriminação. Eu sei, por exemplo, o que acontece nos bancos e a maneira como o Ministério Público se empenha em fazer com que a lei seja respeitada. Mas encontrei entre dirigentes locais e nacionais, altos funcionários da Polícia Federal e alguns juízes nos Estados não apenas a velha desculpa da democracia racial, mas também a falta de empenho em aplicar a política federal de combate ao racismo. É preciso que a vontade política expressa na esfera federal seja aplicada no plano regional.
Doudou Diène - O Brasil fez um esforço considerável na elaboração de um status jurídico contra o racismo, pela legislação, pela criação de estruturas no aparelho de Estado, em especial a Secretaria pela Igualdade Racial, SEPPIR, com políticas de ação afirmativa e, sobretudo, no aspecto jurídico. Não há dúvida de que mostra uma vontade de acabar com o racismo. A lei e a constituição brasileira são os documentos que o Brasil se deu para combater o racismo de uma maneira clara e firme. A única questão é a aplicação dessa legislação. Vi duas realidades muito complexas no Brasil. De um lado, conheci pessoas com vontade de lutar contra a discriminação. Eu sei, por exemplo, o que acontece nos bancos e a maneira como o Ministério Público se empenha em fazer com que a lei seja respeitada. Mas encontrei entre dirigentes locais e nacionais, altos funcionários da Polícia Federal e alguns juízes nos Estados não apenas a velha desculpa da democracia racial, mas também a falta de empenho em aplicar a política federal de combate ao racismo. É preciso que a vontade política expressa na esfera federal seja aplicada no plano regional.
Revista Raça - E que recomendações o senhor pretende fazer em seu relatório?
Doudou Diène - Recomendarei um plano nacional abrangente para combater o racismo, e que ele seja feito em estreita colaboração com as comunidades diretamente envolvidas, tratando primeiro dos aspectos sociais, econômicos e políticos. Também vou sugerir que se corrija a invisibilidade das comunidades e que se faça com que as estruturas que dirigem a sociedade brasileira reflitam a riqueza cultural e étnica deste país, não dando mais a impressão de que, quando chegamos ao Brasil, estamos na Lua, com uma face clara e escura completamente opostas.
Doudou Diène - Recomendarei um plano nacional abrangente para combater o racismo, e que ele seja feito em estreita colaboração com as comunidades diretamente envolvidas, tratando primeiro dos aspectos sociais, econômicos e políticos. Também vou sugerir que se corrija a invisibilidade das comunidades e que se faça com que as estruturas que dirigem a sociedade brasileira reflitam a riqueza cultural e étnica deste país, não dando mais a impressão de que, quando chegamos ao Brasil, estamos na Lua, com uma face clara e escura completamente opostas.
Revista Raça - Qual a sua reação diante das autoridades que tentaram diminuir o problema da questão racial no Brasil?
Doudou Diène - Eu fiquei perturbado. Foram altas personalidades que disseram isso e uma delas me disse até que a questão do racismo não era pertinente no Brasil. Ele não conseguia ver, parecia ser muito sincero. No escritório dele vi o Brasil branco, tradicional. Ele era simpático, não nego. Mas disse isso com tanta sinceridade...
Doudou Diène - Eu fiquei perturbado. Foram altas personalidades que disseram isso e uma delas me disse até que a questão do racismo não era pertinente no Brasil. Ele não conseguia ver, parecia ser muito sincero. No escritório dele vi o Brasil branco, tradicional. Ele era simpático, não nego. Mas disse isso com tanta sinceridade...
Revista Raça - E o quanto dessas pessoas o senhor encontrou?
Doudou Diène - Uma minoria, mas uma minoria que ocupa posições importantes.
Revista Raça - E quanto às ações afirmativas que o senhor citou?
Doudou Diène - As ações afirmativas são a única maneira de corrigir as injustiças. É a única forma de se trazer igualdade em um país com uma discriminação histórica tão profunda como a brasileira. Populações inteiras foram marginalizadas, apesar de sua competência ou qualidade, por conta de sua raça ou etnia. É preciso que haja ação afirmativa para corrigir essa injustiça tão forte. A ação referida deveria ser ampliada a outros setores da sociedade e não apenas à universidade. Vou aconselhar para que elas sejam estendidas para o plano político e também para o serviço público. Os partidos precisam ter opções de candidatos das comunidades. Depois, o próprio sistema democrático resolve se os elege ou não.
Doudou Diène - As ações afirmativas são a única maneira de corrigir as injustiças. É a única forma de se trazer igualdade em um país com uma discriminação histórica tão profunda como a brasileira. Populações inteiras foram marginalizadas, apesar de sua competência ou qualidade, por conta de sua raça ou etnia. É preciso que haja ação afirmativa para corrigir essa injustiça tão forte. A ação referida deveria ser ampliada a outros setores da sociedade e não apenas à universidade. Vou aconselhar para que elas sejam estendidas para o plano político e também para o serviço público. Os partidos precisam ter opções de candidatos das comunidades. Depois, o próprio sistema democrático resolve se os elege ou não.
Revista Raça - As ações afirmativas devem se restringir à esfera pública?
Doudou Diène - Eu vou propor a discriminação positiva na escolha de postos públicos, mas também na iniciativa privada. Claro que isso não deve ser imposto ao setor privado, que deve adotar programas de diversidade em troca de incentivos fiscais ou mesmo reconhecimento.
Doudou Diène - Eu vou propor a discriminação positiva na escolha de postos públicos, mas também na iniciativa privada. Claro que isso não deve ser imposto ao setor privado, que deve adotar programas de diversidade em troca de incentivos fiscais ou mesmo reconhecimento.
Revista Raça - O senhor já disse que a globalização é a anulação de culturas por outras. Mas como o senhor vê a questão do hip hop, que surgiu nos Estados Unidos, mas é um elemento de expressão de grupos, não somente negros, em vários países do mundo?
Doudou Diène - Eu creio que há manifestações que vêm da mesma experiência histórica. O hip hop nasceu na periferia das grandes cidades norte-americanas como uma expressão de revolta cultural e popular que se tornou universal. É normal que seja assim e que seja apropriada por jovens de outros continentes e países. O hip hop, a capoeira e outras manifestações possuem a mesma potência cultural e crítica.
Doudou Diène - Eu creio que há manifestações que vêm da mesma experiência histórica. O hip hop nasceu na periferia das grandes cidades norte-americanas como uma expressão de revolta cultural e popular que se tornou universal. É normal que seja assim e que seja apropriada por jovens de outros continentes e países. O hip hop, a capoeira e outras manifestações possuem a mesma potência cultural e crítica.
Revista Raça - Como o senhor avalia as políticas de combate ao racismo no Brasil em relação a outros países da América Latina?
Doudou Diène - O Brasil, nesse ponto, vai muito além da Colômbia e, ao mesmo tempo, como aqui os negros são 40% da população, essas políticas são mais vistas. Muitos países ainda não reconhecem estruturas de racismo. A igualdade no Brasil é uma condição para que o país se torne uma grande potência mundial.
Doudou Diène - O Brasil, nesse ponto, vai muito além da Colômbia e, ao mesmo tempo, como aqui os negros são 40% da população, essas políticas são mais vistas. Muitos países ainda não reconhecem estruturas de racismo. A igualdade no Brasil é uma condição para que o país se torne uma grande potência mundial.
Artigo publicado na Revista raça, in /http://racabrasil.uol.com.br/Edicoes/93/artigo12649-1.asp/, acesso em 17 de fevereiro de 2012.
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